A peça “Flores para Mim”, escrita por Abel Neves a pedido do Teatro Meridional e que ali se estreia na sexta-feira, é uma peça sobre a imperfeição da condição humana, que apresenta os nossos defeitos como deficiências.
“Num mundo povoado de tantas crises, apeteceu-me descentrar o foco e ir para a crise humana, que é o princípio de todas as crises”, disse à Lusa a encenadora, Natália Luiza, codirectora artística do Teatro Meridional.
“Esta peça foi escrita numa série de circunstâncias, como eu ter-me confrontado, mais uma vez, com a dificuldade de uma pessoa com mobilidade reduzida para entrar num edifício público, o tsunami no Japão, as primeiras manifestações deste movimento reivindicativo de rua… e esta peça acaba por cruzar estas dimensões todas, há aqui várias deficiências – só não há a pior de todas, que é a moral, que é a que provoca hoje a deficiência do mundo, a crise provocada pela imoralidade da alta finança”, indicou.
Catarina (Teresa Sobral) é uma deficiente motora, encontra-se numa cadeira de rodas. “Eu não estou imobilizada – corrige ela – tenho mobilidade reduzida”.
É uma pessoa amarga, revoltada com o seu presente e que se refugia no passado, razão pela qual decidiu decorar a sala de sua casa como o quarto de um hotel de duas estrelas pobre, sujo e malcheiroso, onde iria passar um fim-de-semana com o então namorado, Jaime (Rui M. Silva), que nunca apareceu.
“Gosto de hotéis, são impessoais. É como se não fosse eu a viver a minha vida”, afirma.
E sobre as relações humanas, observa que “fazemos uns com os outros o mesmo que as placas tectónicas: colisão e afastamento”.
Catarina responde muitas vezes torto à tia, Rita (Elsa Galvão), pouco mais velha que ela e que lhe dá o apoio possível, mesmo à sua revelia. Irrita-se com tanta frequência, que Rita lhe pergunta: “Mas o que é que foi agora? Mais uma palavrinha de que não gostaste?”.
“A partir de uma personagem que altera a sua vida, de alguma maneira, temos o pretexto para falar das dimensões humanas, que é aquilo de que eu gosto no teatro… Quando o teatro expõe os seres humanos que todos somos, com defeito. Trabalhámos as personagens sobretudo ao nível dos seus defeitos”, resumiu Natália Luiza.
Jaime tem agora outra namorada, uma rapariga mais nova chamada Mirita (Sara Leitão), e visitam Catarina com frequência, porque ele se sente culpado da situação – ou condição, como ela logo emendaria – de Catarina.
Mirita insiste em levar flores a Catarina, que detesta flores desde que, depois do acidente, quando estava no hospital, Rita lhe levou o primeiro de muitos ramos. Fizeram-na sentir “imbecil e murcha”, diz ela.
“Eu só quero ajudar” é a frase mais repetida por Mirita, mesmo quando diz coisas inconvenientes em catadupa e é flagrante que a sua ajuda não é bem-vinda e que Catarina gostaria de ser deixada em paz.
“A Mirita tem uma deficiência social, tem um défice social”, aponta a encenadora.
Natália Luiza sublinha igualmente que esta é uma característica dos cuidadores, este excesso de zelo que os leva a tratar os outros com condescendência e a opor-se à respectiva vontade, dizendo que é para o bem deles.
“Tanto bem faz mal!”, exaspera-se Catarina, depois de Rita, mais uma vez, insistir para que ela coma o jantar ou, pelo menos, aceite beber um chá.
“Nós aqui cruzamos deficiências de vária ordem, da ordem do físico, que é a mais óbvia, depois as de ordem funcional, afectiva, social… Há ainda a deficiência do cuidador, que reivindica o seu espaço, e isso acaba por ser uma forma de deficiência também”, comentou.
Se tivesse de fazer um convite directo ao público para vir ver esta peça, Natália Luiza fá-lo-ia assim: “Venham ver qual é a vossa deficiência”.
“Flores para Mim” estará em cena no Teatro Meridional até 11 de dezembro, de quarta-feira a sábado às 22:00 e aos domingos às 17:00.
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