sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Sorria: você está a ser filmado!

E continue sorrindo: os seus e-mails estão a ser rastreados e os seus hábitos catalogados. Em nome da segurança, as tecnologias mais avançadas matam a privacidade!

Por Rafael Kenski
Algumas pessoas sabem todos os lugares em que você esteve no ano passado. Possuem também a lista das mercadorias que comprou, as músicas que ouviu e as pessoas com quem falou. É possível que elas saibam até a sua preferência sexual. Assustador, não? O motivo alegado para tanta perseguição é apenas trazer segurança e conforto. Para si. Assim como as novas tecnologias se esmeram em acumular e disponibilizar o máximo de informações sobre todos os assuntos de interesse, muitas instituições utilizam os mesmos instrumentos para obter e manipular dados sobre pessoas simples, como eu e você. As Empresas tentam reunir informações detalhadas dos seus possíveis clientes para oferecer produtos e serviços personalizados no momento apropriado. Governos e agentes de segurança tentam registar todas as actividades da população em busca de criminosos e infractores. O preço a pagar por esses benefícios, no entanto, é ser observado o tempo todo e ter as suas informações mais íntimas devassadas.
"Estamos a transitar do ‘estado de vigilância’ para a ‘sociedade de vigilância’", afirma o cientista político canadense Reg Whitaker, autor do livro The End of Privacy ("O fim da privacidade"), inédito no Brasil. Ao contrário do que previam romances como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o que acontece não é apenas um governo centralizado que monitora actividades da população. Empresas, família e até mesmo vizinhos instalam sistemas de vigilância cada vez mais sofisticados. Da mesma forma, em vez do Estado obrigar as pessoas a registarem-se em sistemas de controlo, são os próprios cidadãos que, cada vez mais, entregam os seus dados pessoais de forma voluntária. "A nova tecnologia de controlo diferencia-se das anteriores de duas formas: ela é descentralizada e consensual", diz Whitaker.
O rastreamento começa de cada vez que saímos à rua. Só na cidade de São Paulo, cerca de 125 000 câmaras monitoram as actividades dos pedestres em prédios, parques, lojas e calçadas. Cerca de 75% das grandes redes de supermercados, farmácias e lojas reforçam a segurança com filmagens. Noutros países, esta técnica é ainda bem mais difundida. Até 2004, o governo inglês terá instalado nas ruas uma rede de dois milhões de câmaras para busca de criminosos. Muitas delas estarão equipadas com sistemas que reconhecem as pessoas pela sua face ou pela sua forma de caminhar e analisam se são procuradas pela polícia. Os motoristas – que, em São Paulo, convivem com mais de 100 radares fotográficos – são vigiados, no Reino Unido, por mais de 7 500 sensores que identificam a placa do veículo e verificam se ele é ou não roubado.
E essa parafernália funciona? Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, o uso de radares eletrónicos diminuiu até 58% o número de mortes em acidentes fatais. No Reino Unido, alguns crimes de repercussão nacional só foram resolvidos graças à ajuda de redes de câmaras. A eficácia destes equipamentos, no entanto, ainda é objecto de muita polémica. "As câmaras identificam alguns delitos óbvios no mesmo momento em que acontecem e fornecem, posteriormente, evidências da cena do crime", afirma Jason Ditton, director do Centro Escocês de Criminologia e uma das poucas pessoas a empreender estudos independentes sobre o sistema.
A grande preocupação em relação ao sistema é a possibilidade de abuso. A coordenadora deste programa num bairro de Londres afirmou à revista New Scientist que um centro de lazer tinha colocado câmaras controladas por homens no vestiário feminino. Surgiram também diversas denúncias de que os operadores definiam os suspeitos apenas pela aparência – o que abriu a porta para denúncias de preconceito. Em outra ocasião, um operador foi condenado por espionar mais de 200 mulheres e usar o telefone da própria central para assediá-las.
Problemas como esses podem tornar-se ainda piores quando forem implantadas algumas outras tecnologias de vigilância já existentes. O inventor americano Graham Hawkes desenhou uma forma de acoplar um rifle a estas máquinas e permitir que policias eliminem criminosos como se estivessem num jogo de computador. Outro sistema americano, chamado Body Search ("busca corporal"), permite identificar objectos debaixo da roupa, como pistolas, facas, pacotes de drogas e também aquelas partes do corpo que a maioria das pessoas têm o hábito de esconder. "As câmaras são tidas como se fossem sempre boas e elas não o são", afirma Ditton.
Se sair à rua sem ser vigiado já é difícil, pnavegar anónimo na internet é quase impossível, principalmente quando se está no trabalho. Uma pesquisa da Associação Americana de Administração, feita em abril do ano passado, constatou que 73,5% das companhias nos Estados Unidos usam algum método de vigilância, como registar e-mails, páginas visitadas e as ligações telefónicas dos funcionários. "Se a empresa deixar claro que aqueles instrumentos são para uso profissional e que podem ser monitorados, ela tem o direito de vigiar os funcionários", afirma o advogado especializado em tecnologia António José Ludovino Lopes, que actua em São Paulo. Alguns casos, no entanto, chegam a extrapolar o ambiente de trabalho. Nos Estados Unidos, um funcionário de uma companhia eléctrica foi demitido depois de usar o computador da sua própria casa para fazer críticas ao seu emprego e ao seu chefe numa lista de discussão na internet.
Mesmo tendo usado um pseudónimo, o verdadeiro nome foi revelado depois da empresa ter entrado na justiça contra a provedora do serviço. Casos como este são possíveis graças ao surgimento de diversas companhias, como a Ewatch, cujo serviço é procurar o nome da empresa na internet para avaliar o impacto dos seus produtos, descobrir boatos e descobrir empregados pouco fiéis.
Mas as empresas não vigiam só os seus funcionários. Várias páginas da internet costumam implantar no computador de quem as visita pequenos programas (os chamados cookies) que registam alguns dados sobre o usuário, como o tipo de navegador utilizado ou as páginas que ele visitou. Os cookies são importantes para salvar as preferências do usuário e construir uma lista de compras para ele, por exemplo. Mas eles também podem enviar para as empresas informações sobre tudo o que as pessoas fazem na rede. Esta prática foi alvo de grande polêmica quando se descobriu que a agência anti-drogas americana os utilizava para rastrear internautas. Cada vez que alguém digitava grow pot (plantar maconha) ou outros termos relacionados a drogas nos principais serviços de busca, aparecia um anúncio da agência que carregava um cookie.
Apesar de o governo afirmar que o programa era usado apenas para verificar a eficiência da propaganda, o medo de que ele fosse utilizado para perseguir pessoas sem autorização judicial levou a Casa Branca a restringir o uso de softwares desse tipo nas páginas do governo.
A empresa americana DoubleClick – uma das maiores agências de anúncios na internet – também sofreu várias críticas de invasão de privacidade quando comprou, por 1 bilhão de dólares, a firma Abacus Direct, dona de um enorme cadastro de consumidores. Caso juntasse as informações que ela reúne por cookies com o banco de dados recém-adquirido, a empresa teria à sua disposição uma lista detalhada dos hábitos, dentro e fora da internet, de mais de 100 milhões de pessoas. A empresa teve que voltar atrás depois de uma forte reacção popular. Em vários países, inclusive no Brasil, arquivar informações pessoais sem autorização é crime. "É permitido recolher dados para fins estatísticos, mas é contra a lei reunir elementos que identifiquem os costumes de alguém", diz José Lopes.
O principal risco que a internet apresenta para a privacidade está na sua facilidade de reunir dados de diversos tipos em um só lugar. "Quanto mais pulverizadas são as informações, maior é a privacidade", afirma o advogado Amaro Moraes, criador da página Avocati Locus, dedicada a questões de privacidade e tecnologia. Mas essa tendência pode piorar. Um novo projecto da Microsoft pretende reunir informações pessoais de diversos tipos numa só plataforma, chamada Hailstorm. A princípio, o programa permitirá que as pessoas façam compras na internet utilizando uma só senha, conversem com amigos e agendem compromissos. No futuro, espera-se que inclua outros serviços, como identificar por câmaras se o usuário pode responder a uma mensagem ou enviar a sua ficha médica para um hospital ao ser notificado de um acidente. O principal problema do projecto é saber se os clientes aceitarão abrir toda a sua vida para uma só companhia e se ela é segura o suficiente para proteger essas informações.
No Brasil, cruzar dados de uma mesma pessoa vai ser mais fácil a partir do próximo ano. É quando começará a ser implantada uma medida que reúne todos os documentos num só número de identidade. Além de simplificar a vida do cidadão – que não precisará tirar uma carteira atrás da outra – a medida facilita a identificação de sonegadores. Por outro lado, o cadastro de diversos departamentos estarão unidos e poderão ser facilmente comparados, tanto pelo governo como por empresas. "A população ficará fragilizada em termos de privacidade e cidadania", afirma José Lopes. O Imposto de Renda poderá verificar se você viajou para o exterior ou se possui alguma ficha na polícia, assim como a previdência conhecerá as condições de saúde de cada um. "Quando tentaram implantar esse projecto na Austrália, os protestos foram tão grandes que o governo caiu. Aqui no Brasil ninguém se preocupou", diz Amaro Moraes.
Apesar das críticas, muitos governos tentam inventar formas de aproveitar a crescente facilidade de obter informações para aumentar o controle sobre a população. O FBI instalou um projeto chamado Carnivore, que consiste em "grampear" a internet de pessoas suspeitas. Após conseguir licença judicial, agentes instalam uma caixa no provedor de acesso, que registra o tráfego de e-mails e de sites para a conta específica. A mesma agência possui convênios com empresas especializadas em bancos de dados e companhias de transporte para obter delas informações detalhadas sobre os cidadãos.
Já na Inglaterra, os provedores de acesso são obrigados a registar o tráfego de internet e encaminhá-lo ao governo. Se necessário, cada pessoa deve indicar também a chave para descodificar mensagens criptografadas e, se disser a alguém a respeito da investigação, pode ser condenada até cinco anos de prisão. Lá, como se vê, a obsessão por segurança e o desrespeito pela privacidade tornaram-se tão grandes que já há um banco de dados com o código genético de todas as pessoas com antecedentes criminais. É uma boa notícia para investigadores de polícia: qualquer fio de cabelo ou pedaço de pele deixados na cena do crime podem ser utilizados para identificar o culpado. Para a população, a medida pode ser considerada invasiva, já que dentro de alguns anos, talvez o cadastro de DNA inclua todos os cidadãos.
Diversas instituições por todo o mundo já utilizam dados biológicos na busca de infractores. Algumas universidades do Japão, Europa e Estados Unidos treinam exames de sangue rotineiramente para verificar o uso de drogas por parte dos alunos. No futuro, esses testes podem tornar-se ubíquos. O cientista americano Gary Settles, da Penn State Research Foundation, patenteou, no ano passado, um portão capaz de absorver o fluxo de ar gerado ao redor do corpo humano e identificar nele indícios de drogas ou explosivos. Segundo Settles, a mesma tecnologia poderá ser usada para guardar o DNA de quem passar por ali.
Avaliar pessoas a partir de um banco de dados pode ser perigoso de várias formas. No meio de tantas informações, corrigir um elemento errado é uma tarefa demorada e, algumas vezes, impossível. "Resumos de personalidade, do tipo que dá o perfil de um consumidor, dominam as nossas vidas em aspectos muito importantes", afirma Reg Whitaker. Para ele, as pessoas no mundo real são contraditórias, desordenadas e complexas. Pelo contrário, o retrato que os bancos de dados apreendem de cada um pode ser interpretado em construções lógicas baseadas em simplificações grosseiras. Ele cita um caso de 1950, quando o governo americano, depois de reunir uma série de dados sobre o professor de chinês Owen Lattimore, chegou à conclusão de que ele era o principal espião soviético nos Estados Unidos. O caso só terminou cinco anos depois, quando o acusado foi inocentado por falta de provas. "Hoje somos todos, em certo sentido, Owen Lattimores", diz Whitaker.
Se todos esses factos o fizerem pensar que a privacidade acabou de vez, saiba que ainda não sabe o pior. A Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), junto com colegas da Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, possui um grande sistema de vigilância que intercepta e processa a maior parte das comunicações feitas entre países. O acordo existe desde 1947 e só se tornou conhecido há poucos anos com o nome de Echelon (escalão). Trata-se de uma rede de satélites-espiões, grampos em cabos de telecomunicações submarinos, aparelhos de escuta em embaixadas e receptores de rádio que enviam dados para centrais espalhadas em cada um desses países.
A princípio, a selecção dos dados relevantes era feita de forma manual, mas foi automatizada a partir dos anos 70 e hoje conta com uma sofisticada rede de computadores e softwares que utilizam palavras-chaves para garimpar as comunicações de interesse para esses governos. "A primeira rede mundial não foi a internet, mas sim a interligação de estações e centros de processamento do Echelon", afirma o jornalista escocês Douglas Campbell, uma das primeiras pessoas a descobrir esse oculto e sinistro sistema de espionagem multinacional. Campbell produziu um relatório para o Parlamento Europeu sobre o assunto. Segundo a descrição dada em 1992 por um ex-director da NSA, num esquema como esse, para cada milhão de mensagens recebidas apenas mil se encaixam nos critérios, dez são vistoriadas por analistas e apenas uma é digna de ser relatada a escalões superiores. Acredita-se que o Echelon seja capaz de monitorar 90% de todas as ligações internacionais e grande parte do tráfego na internet.
No ano passado, o ex-director da CIA, James Woolsey, escreveu um artigo para o jornal The Wall Street Journal a confirmar a existência do projecto e explicando aos europeus o motivo de tanta vigilância: "Nós espionamos porque vós subornais as autoridades estrangeiras". Referia-se às revelações veiculadas no relatório de Douglas Campbell: uma delas, de que o Echelon teria interceptado uma tentativa da empresa francesa Thomson-CF de pagar propina a membros do governo brasileiro para ganhar a concorrência do projecto Sivam, sistema de vigilância de 1,3 bilhão de dólares a ser implantado na Amazónia. No final, quem ganhou a disputa foi a Raytheon, uma empresa americana que, segundo o relatório, também trabalha na manutenção dos satélites do próprio sistema Echelon. Depois dessa, quem vai acreditar que o monitoramento da Amazónia será observado apenas pelos órgãos governamentais brasileiros que contractaram o serviço?
Para saber mais
Na livraria: The End of Privacy, Reg Whitaker, The New Press, Estados Unidos, 1999
The Transparent Society, David Brin, Perseus Books, Estados Unidos, 1998
Os Estados Unidos autorizaram a junção dos cadastros de bancos, seguradoras e corretoras. As empresas poderão avaliar, antes de conceder um empréstimo, a condição de saúde de uma pessoa ou quantas vezes bateu com o carro. No Brasil, uma nova lei facilitará a conexão entre um número muito maior de bancos de dados de órgãos governamentais
O governo americano monitora quase todos os telefonemas internacionais e grande parte do tráfego na internet. Quando julga necessário, utiliza também uma tecnologia que capta as emanações de computadores e reproduz, a centenas de metros de distância, tudo o que aparece na tela.
Companhias como a Space Imaging permitem que uma pessoa monitore qualquer ponto na face da Terra com fotos diárias de satélite. Governos, empresas e lojas apostam em milhões de filmagens que registam tudo o que acontece nas ruas. Da mesma forma, pais instalam câmaras secretas para vigiar a própria casa à distância
Muitas redes de varejo cadastram todas as compras dos clientes. Câmaras que reconhecem traços faciais logo aperfeiçoarão esse processo, registando até o caminho percorrido dentro da loja pelas pessoas. Essas informações são usadas para criar perfis eletrôóicos que, muitas vezes, não têm a menor semelhança com a realidade.

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